quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O corpo e as eleições

Se olharmos para as Marchas de Junho de 2013, observamos que as bandeiras expressas nos cartazes apresentavam nossos desejos de saúde, educação, moradia, transporte. 
As vozes das ruas anunciavam nossos sonhos de liberdade de decidir sobre nossos corpos, de viver com alegria os nossos afetos e as cores das nossas peles. 
Proclamamos nossa indignação. Fomos e seguiremos insurgentes, pois queremos um país e as nossas cidades como lugares da diversidade humana.
Ao olharmos as eleições brasileiras, observamos que o corpo sempre esteve no centro das polêmicas. Em 1989 e 2010, o corpo das mulheres era o centro do debate. A pauta era a legalização do aborto. Em 2014, novamente, o corpo presente no debate. Em pauta, a diversidade sexual e a legalização das drogas.
Vendendo a vida das pessoas em troca de votos conservadores, as vozes dos que querem ganhar apenas pelo dinheiro e pelo poder, dizem: “Vamos discutir o Banco Central, a inflação”. Com seus discursos, silêncios e ações ajudam queimar, torturar e matar a dignidade que deveria viver em corpos. Fingem que o corpo não faz parte da macropolítica econômica e social.  
Mas, o movimento feminista já nos ensinou que o pessoal é político e que o privado é público. Alguns fatos divulgados pela mídia demonstram a urgência de debatermos, enquanto sociedade, sobre estas questões:
1. Jandira Magdalena (RJ), mulher trabalhadora, casada, foi realizar um aborto em clínica clandestina. Após ter sido levada de carro pela "equipe" da clínica, desapareceu por vários dias. O último contato que teve foi por SMS com o seu marido: "Amor, mandaram eu desligar o celular, tô em pânico". O corpo foi encontrado queimado dentro de um carro, sem a arcada dentária e com os membros amputados.
2. Solange e Sabriny (RS), jovens trabalhadoras, lésbicas, iriam se casar em um CTG (Centro de Tradições Gaúchas). E o CTG foi incendiado por crime de homofobia. O sonho delas: comprar uma casa própria e celebrar a união com a família.
3. Poucos dias atrás, um jovem, irmão nosso aqui de Betim, nossa Minas Gerais, foi torturado e queimado vivo em um ritual de “purificação de gays”. Lembra-nos a ideologia dos rituais de tortura no Holocausto promovidos pelo nazismo contra judeus, homossexuais, ciganos, comunistas e demais grupos de pessoas. Aqui, a barbaridade tem as letras e as mãos do discurso fundamentalista religioso.
4. O goleiro Aranha sofreu racismo em massa e o jogador Richarlyson sofreu e continua sofrendo homofobia em massa dentro e fora dos gramados. Mesmo assim, seguimentos conservadores dos meios de comunicação e do judiciário teimam em afirmar que vivemos em uma democracia racial e sexual. 
5. No dia 28 de setembro, vimos um candidato à presidência dizer que “aparelho excretor não reproduz”, um atentado à inteligência, proferir incitações ao ódio e restrição ao direito de todas as pessoas terem suas famílias. Em um país sério e comprometido com os direitos humanos, jamais um sujeito de tão baixo nível moral e de tal repugnância seria candidato.
6. Claudia, DG e Amarildo foram mortos por conta da atual política de guerra às drogas. São três casos noticiados e não são fatalidades pessoais. São parte de uma tragédia nacional que leva à saudade milhares de brasileirxs por conta das disputas por territórios. 
Uruguai, Portugal, Espanha e Argentina vêm enfrentando alguns desses debates por compreender que pensar a vida, o cotidiano humano, passa pela libertação dos corpos, pelas liberdades individuais, pelo direito a uma vida digna. E exige uma outra política econômica e social. Uma nova forma de organização dos tempos e espaços sociais.
Reproduzimos aqui respostas do presidente uruguaio, Mujica:
ABORTO: “Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos. Aborto é velho como o mundo, a mulher na sua solidão, inevitavelmente tem de enfrentar este problema. Para nós, a legalização do aborto e os métodos de contracepção, o trabalho psicológico, significam uma maneira de perder menos. Aqui a mulher não vai diretamente a uma clínica para fazer aborto, isto era na época em que era clandestino. Passa pelo psicólogo, depois é bem atendida.”
CASAMENTO IGUALITÁRIO CIVIL: “O casamento homossexual, por favor, é mais velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre O Grande, por favor. Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente.”
DROGAS: “Queremos tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não seja o monopolista do mercado. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as pessoas a atuarem do ponto de vista médico. Se as pessoas continuam no mundo clandestino, não podemos trabalhar, pelo menos trabalhar a tempo, só entramos quando já é muito tarde e quando já cometeram delitos para ter dinheiro e conseguir a droga.”
No Brasil, precisamos unir especialistas nas temáticas do corpo e os movimentos sociais para que tenhamos maior força na proposição de leis e na cobrança da efetivação delas. Junho de 2013, as experiências uruguaias, portuguesas, espanholas e argentinas têm mostrado que essa união é possível.
Somos parte daquelxs que acreditam que “nada deve parecer natural” e “nada é impossível de mudar”. E não é de hoje que, nós feministas, estamos fazendo revolução. Os movimentos negros, LGBT, pela legalização das drogas e tantos outros conscientes e solidários às lutas estamos dizendo que cansamos do corpo aprisionado, humilhado, torturado e assassinado. 
Cansamos da violência que delimita e retira nossa dignidade. Nossa, minha e das nossas irmãs e dos nossos irmãos com seus modos específicos de ser, pensar e agir revelados através do corpo.
Somos milhões de Marias, Joãos, Aranhas, Richarlysons, Claudias, DG’s e Amarildos. Somos suas/seus parentes, vizinhxs, colegas de trabalho, amigxs.
Somos aquelas pessoas solidárias que, mesmo não conhecendo face a face as vítimas, compartilhamos a luta por dignidade para que cada pessoa exista e seja feliz na sua forma de ser, viver e amar. Não estamos sozinhxs na multidão!